13.9.08
Seu Charada poderia ser tudo isso e outros termos ordinários que inventavam, mas algo o tornava diferente.
Com trajes e farrapos, sentava-se com porte no chão da rua, abria um caderno amassado e punha-se a escrever com um toco de lápis.
Não reclamava. Ficava quieto, apenas. Escrevia.
Era notável como se deixava aproximar pelas pombas. Do paletó tirava um punhado de milho e dava às companheiras; talvez por gratidão — ou por alucinação mesmo — as aves pareciam mostrar interesse por seus escritos.
Isso foi tudo que consegui observar durante um ano. Há quatro estações, topava com ele e nenhum contato havia tentado. Assim continuei — presa à Lei da Inércia — até que meu “movimento resignadamente anestesiado” entrou em choque com a força da bisbilhotice. Tomei coragem, estanquei os passos e caminhei em direção ao homem.
Era um senhor de meia-idade, meia vida, meio incerto. Tinha cabelos longos, louro desbotado, barbudo, olhos azuis miúdos, roupas rasgadas, Havaianas moídas pelo uso.
Descobri que Seu Charada não avivava o passado, vivia só no presente. Escrevia sobre a rua, o céu, o que ouvia, via e pensava. Mostrava as anotações às pombas; eram mais atenciosas que muita gente por aí.
Falava pouco, palavras como arrulhos em linguagem telegráfica. Na calçada, ganhou invisibilidade e perdeu orgulho. Pouco se importava com o que outros pensavam. Ficava na rua fazendo o que gostava: andar, escrever e cuidar dos leitores voadores.
Nunca o vi pedindo esmola. Perguntei se queria comer algo:
— Não estou com fome. Incrível como vocês passantes passam a vida a comer.
Fiquei calada. Pensei em nada. Ou melhor, pensei em tudo e reagi com nada.
Enquanto digeria o que ouvi, Seu Charada começou a guardar as folhas e o toco de grafite, ajeitou o casaco, enfiou cada braço no bolso e foi embora sem pressa, sem tchau.
Ele partiu e continuei ali. Tentava decifrar as charadas que havia me pregado ao chão.